top of page

TEOFOBIA

  • Foto do escritor: Carlos Reis
    Carlos Reis
  • 18 de nov. de 2015
  • 7 min de leitura

Estive pensando muito ultimamente e resolvi escrever a história da fundação da minha religião. Anos atrás cheguei à conclusão que as religiões do meu país não me satisfaziam mais; e isso por muitos motivos. O principal deles se devia ao fato de eu ser um autoritário – para muitos eu era até um totalitário. Examinei as religiões que não eram compatíveis com a cultura do país onde eu vivo, estudei suas histórias, fiz comparações cruzadas, reparei nas características próprias de cada uma delas, e cheguei à conclusão, como disse, que elas eram falsas e por isso eu deveria criar uma nova religião. Essa idéia, eu confesso, não me ocorreu de uma hora para outra; houve fatos pontuais que me levaram a essa decisão. A última grande coisa que me ocorreu foi uma revelação. Dela tenho memória deslumbrada, de alguém em êxtase e não totalmente consciente. A coisa ocorreu mais ou menos assim.


Um dia das minhas últimas férias há 13 anos, eu estava em um lugar ermo onde eu me encontrava só, quando fui visitado por aquilo que costumam ou costumavam chamar de anjo. Um anjo apareceu em meio a uma nuvem luminosa sem deixar eu ver o seu rosto. E ele saiu tão rápido da minha visão como chegou. Só teve tempo de dizer que se chamava Um-El, e logo me revelou algo espantoso: ele me assegurou que eu devia contar a todos que eu tivera um encontro com Deus. Era um anjo-Deus, um anjo-instrumento de Deus. Isso, fiquei sabendo mais tarde, se chama teofania, e não costuma ocorrer com freqüência. Somente alguns privilegiados são escolhidos, e muitos destes se acharam deuses. O anjo parecia sussurrar aos meus ouvidos de uma maneira estranha, o que me pareceu serem ordens ou mandamentos. Eu tinha acabado, então, de receber uma revelação divina com uma missão: a missão de me tornar o mensageiro daqueles mandamentos, cujo primeiro, me lembro bem, era que há um só Deus e eu era o seu Mensageiro. O anjo me ditara uma série de coisas aos meus ouvidos. Uma delas que me lembro bem, é que eu seria desde aquele encontro um homem especial, diferente de todos os outros. Não importaria mais o meu passado de ladrão de cargas na fronteira do meu país, um passado de roubo de cavalos, nem o meu envolvimento sexual com crianças, entre outras coisas ainda piores como estuprar mulheres velhas e matar os ricos que eu encontrasse nas estradas. O que importava, e assim me assegurou o anjo Um-El, é que eu pudesse dizer aos homens que eu era especial, aliás, o melhor do gênero humano. Eu nem precisaria mudar de nome, nem muito menos mudar os meus hábitos.


Assim me pus a pregar o que o Anjo me disse, e fundei uma religião. Mas os homens são difíceis, e depois de muitos e longos anos eu não consegui convencer quase ninguém das verdades que o anjo Um-El me passara e que eu cumpria fielmente. Com a minha pregação e meu exemplo próprio de conduta, eu pude convencer, no máximo, umas poucas cento e cinquenta pessoas. Logo se insurgiram contra mim os invejosos, os detratores, os que não crêem em nada, os ateus, e principalmente, os defensores de religiões farisaicas e antigas, todas falsas. Tentaram calar a minha boca para continuarem surdos à palavra do meu Deus. Fiquei tomado de justa e sagrada ira e parti para ações que exigiram mais desforço físico, paixões e emoções fora da minha cidade natal. Armado até os dentes, e na companhia de gente corajosa e determinada como eu, com esse novo método, convenci um número muito maior, a propósito, umas cento e cinqüenta mil pessoas em toda região próxima. Os que não se deixaram convencer ou se submeter, eu simplesmente os mandei para o inferno dos infiéis. O meu problema e do meu Deus estava resolvido.


Mas as coisas não foram tão fáceis assim. Como eu já era entrado em anos, logo percebi que a minha missão e vocação para converter incrédulos deveriam continuar pelos meus sucessores, tão fortes eram as palavras por nós pregadas. Espero que muitas regiões do meu país, e do exterior, onde vivem milhões de infiéis ignorantes da vantagem que receberão por aceitar a minha religião, sejam alcançados por meus seguidores. Já garanti a eles que a palavra passasse a ser escrita, que a minha própria vida deveria ser copiada como o modelo ideal.


O anjo Um-El tinha me falado das vantagens econômicas advindas da escravização de milhões de infiéis, afinal nem só de espírito vive o homem. As propriedades tomadas aos povos invadidos por nós nos dariam o sustento para nossa batalha diária pelo Paraíso prometido por Deus. Taxas, tributos, dízimos, tudo seria canalizado para a nossa vitória, para a glória de Deus, e nada para o politeísmo e a idolatria. Usando da força e da impecância com que fomos agraciados pelo nosso Deus, não teríamos culpa nem remorsos. Tampouco deveríamos nos preocupar com direitos humanos e femininos, principalmente dos gentios. Cobraríamos uma conduta machista implacável de nossos homens – passaríamos no fio da espada os homossexuais – e de nossas mulheres exigiríamos obediência total, cobrada, às vezes, com chibatadas nas costas. Os prazeres sexuais com nossas muitas mulheres e de nossas escravas brancas tomadas aos infiéis – loiras de preferência – nos seriam assegurados até depois da nossa morte quando ingressássemos no Paraíso prometido; um Paraíso como nenhuma religião antes tinha visto. Um Paraíso tão atraente e prazeiroso que muitos de nossos seguidores e apóstolos martirizam até hoje suas vidas precocemente pela glória de nosso Deus.


Tudo deveria ficar registrado por escrito – cronistas nossos habilitados na arte da escrita, excluída a iconografia sacrílega, e mais cultos do que eu, deveriam compilar as nossas experiências para legá-las às gerações futuras. Com isso teríamos um livro sagrado, repleto de nossos exemplos de vida, mormente os meus, de tal modo que os pósteros nos reconhecessem e a mim por muito tempo depois do meu desaparecimento. Assim começamos a fazer.


Como disse, estou velho e alquebrado, talvez por ter de dar conta de uma dezena de mulheres, a maior parte delas velhas, embora ricas. Esse desgaste necessário me fará perder alguns anos de vida, não há dúvida, mas morrerei feliz e irei para o Paraíso onde o nosso Deus, o único Deus verdadeiro, nos garante muitas virgens mais.

Mas agora quero salientar que a nossa tarefa é a de convencer pela força o maior número de pessoas e, principalmente, fazendo isso pela persuasão repetida que somos uma religião de paz. O homem é por demais atraído pela materialidade sedutora, principalmente suas mulheres. Portanto, nosso objetivo terrestre é trazer a paz do nosso Deus que abomina os corpos e todas as coisas morais decadentes. Uma paz garantida somente àqueles que se obrigam a fazer apenas cinco coisas, todos os dias de sua vida santa. Os que não cumprirem as cinco tarefas não devem e não podem morar no Paraíso, e enquanto viverem na Terra não terão de nós nenhuma paz. Devemos mostrar claramente isso e mostrar a pobreza dos nossos irmãos que exigem de nós o seu óbolo. Os apegados ao dinheiro devem repartir suas fortunas, nem que para isso seja necessário o uso da força, aliás, como fazem os nossos irmãos socialistas em sua luta pelo poder. Os recalcitrantes deverão ser castigados de tal modo que o medo infundido neles e por eles inoculado nos outros, sirva de aviso do terrível destino que aguarda aqueles que se recusam à conversão universal que temos em mente. Nesses tempos modernos, onde poucos lêem os nossos livros sagrados, onde se mente muito, se rouba muito, e para outros deuses; tempos em que o passado foi esquecido e as antigas tradições foram apagadas por nós, o medo ainda deve ser cultivado como o principal motivador do nosso movimento universal. Nem sempre mentir é mentir; nem sempre roubar é roubar. Produziremos tanta confusão na mente dos estrangeiros que eles evitarão pronunciar o nosso nome, o meu, e do nosso Deus. Sendo diferente deles, na civilização que queremos fundar não precisaremos nos preocupar com qualquer lógica, isso é coisa ou elemento de gênios maus; nosso Deus saberá fazer a diferença para nós. Faremos a sua vontade sem nos preocuparmos com o certo e o errado. A moralidade antiga e sacrílega dos povos que conquistaremos – que nosso Deus seja louvado! – não nos deverá trancar o caminho. Civilizações antigas e povos que escreveram constituições para as suas vidas são até mais fáceis de conquistar do que povos que cultivam religiões anímicas e atrasadas e que vivem sem leis. Povos assim se intitulam modernos, avançados e democráticos; eles simplesmente não entendem a nossa doutrina superior – terão que ser civilizados à nossa maneira porque nós não nos deixamos levar por princípios e conceitos vazios como liberdade, livre arbítrio, pensamento racional, e outras ilusões sacrílegas. Na verdade, nem queremos que saibam e conheçam a nossa Lei; queremos que apenas a obedeçam. Suas leis serão a nossa Lei. Novamente enfatizo que o medo, depois da própria espada, é a nossa maior arma. Os povos conquistados terão medo de falar em nós, tremerão e dobrarão os joelhos com o relato das nossas guerras de conquista e com os nossos métodos.


Os criadores do “politicamente correto” e os socialistas, os quais têm muita coisa em comum com a nossa crença, nos ajudam muito e devemos agradecê-los. Com os conquistados, e inclusive com esses serviçais úteis, não deveremos perder tempo com explicações metafísicas ou jurídicas – afinal somos a Lei – os usaremos e, depois, nos livraremos deles. Os explodiremos em suas ruas, os enforcaremos nas suas praças, e os apedrejaremos quando estiverem bebendo álcool e fornicando como porcos, até que se convençam da nossa superioridade. No fim, verão que somos justos e que estamos trazendo a paz à Terra. Somos perfeitos e por isso não podemos ter escrúpulos morais, éticos, e de consciência. Quando alguns infiéis tentarem reagir com palavras ofensivas ao nosso Deus e a mim mesmo, os chamaremos de teófobos, de inimigos de uma religião da paz. Diremos isso com tanta força, contundência, e persistência que eles se acovardarão e se renderão à nossa vontade. Eles se curvarão envergonhados e apavorados, e com isso acabarão nos ajudando na nossa pregação sagrada e infalível. Nem se lembrarão que nós matamos os seus homossexuais, vilipendiamos os seus deuses e ícones; que destruímos a sua arte degenerada e sua pseudociência museológica de adoradores do passado. A sua mente confusa, cheia de contradições e de falsas consciências de classe, é uma bênção para nós.


Essas são as minhas palavras, que são as mesmas do nosso Deus. A verdade é o que está escrito, por que assim eu escrevi ou mandei escrever por inspiração do nosso Deus. Se algum erro ou contradição for encontrado nos nossos escritos proferiremos ordens expressas para que as diferenças se ajustem aos nossos desejos. Sempre teremos inimigos, e por isso deveremos acusá-los antecipadamente de teofobia e de serem opositores ao nosso Deus para intimidá-los e desafiá-los a se enxergarem na lâmina polida de nossas espadas. E, se ainda assim resolverem duvidar da nossa fé e da minha palavra, que o futuro não os acolha e que a Terra lhes seja breve.


Muita paz.


MAOMÉ DIANTE DE UMA DECAPTAÇÃO

MAOMÉ DIANTE DE UMA DECAPITAÇÃO


 
 
 

Comments


POSTS RECENTES:
Siga Carlos Reis:
  • Facebook Social Icon
  • YouTube Social  Icon
MEUS ARQUIVOS:

© 2015 por Carlos Reis. 

  • Facebook B&W
  • White YouTube Icon
bottom of page